A sensação térmica em 12 de novembro era de 48 graus célsius na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde recrutas da Polícia Militar iniciavam treinamento no dia mais quente do ano. Submetidos à rigorosa sessão de exercícios de ordem-unida, sem água, os alunos do Curso de Formação de Soldados desfaleciam. Logo nos primeiros dias, numa das punições sem sentido, apelidadas de sugas, os instrutores determinaram que os pelotões se sentassem no chão quente do pátio, sobre as mãos. Um urinou sangue. Outro vomitou sangue. Foi aí que o recém-incorporado Paulo Aparecido, de 27 anos, não resistiu e desmaiou. Foi atendido por paramédicos e, como não acordasse, foi levado a um pronto-socorro, com mais 18 alunos – quatro deles com queimaduras nas nádegas. Sem responder aos estímulos, recebeu massagem cardíaca, e seu coração voltou a bater. Pela gravidade do caso, ele foi transferido para o Hospital Central da PM – e, dez dias depois, sofreu morte cerebral.
As longas horas de exercícios ao sol são padrão na semana de adaptação, a primeira dos sete meses do curso do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (Cfap). Faltas são punidas com flexão de braços ou perda do final de semana livre. Esse tratamento não é exclusividade da PM fluminense. Em todo o país, denúncias de abusos são corriqueiras nos adestramentos das forças policiais. Algumas levam a casos fatais. A morte de Paulo Aparecido chama a atenção para as consequências funestas dos excessos e equívocos. Os cursos do Batalhão de Operações Especiais (Bope) do Rio de Janeiro – como foi retratado no filme Tropa de elite – já registraram duas mortes. Morreram também um agente da Polícia Rodoviária Federal, afogado por instrutores, no ano passado, e um soldado e três cadetes em Mato Grosso, em dois episódios distintos, em 2010 e 1998. Os cursos de formação das polícias do Paraná, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Ceará já foram investigados por abusos.
Em maio, o capitão Leonardo Hirakawa, então comandante do Corpo de Alunos do 3o Ano da Academia D. João VI, que forma oficiais em três anos, protagonizou um episódio que parece saído de um livro sobre a Idade Média. No deslocamento da tropa no Dia da Cavalaria, Hirakawa irritou-se e deu forte chicotada no cadete Fabio Costa. Humilhado, o futuro oficial venceu o medo de retaliação e queixou-se à administração. Responsável por 164 alunos, Hirakawa foi preso por dez dias e transferido para o Regimento de Cavalaria. A PM afirmou a ÉPOCA que “o oficial usou um rebenque e atingiu de leve um aluno. Segundo o capitão, não houve intenção”. De acordo com a corporação, “assim que tomou conhecimento do fato, o comando da Academia decidiu afastá-lo preventivamente, mesmo não havendo intenção de ferir”. O inquérito administrativo foi concluído – a PM não informou o resultado – e entregue à Justiça Militar.
VÍTIMA
O recruta Aparecido. Ele passou mal no treinamento e morreu no hospital (Foto: Reprodução)
Hirakawa foi o 119º colocado entre 127 aspirantes em sua turma. Fez curso de Policiamento Montado em 2008 na Academia Barro Branco, da PM de São Paulo. É um amante da montaria. Há, em seu perfil no Facebook, fotos a cavalo, fardado ou adestrando potros – numa, ele se diverte de pé sobre os animais, qual um artista de circo. Na equitação, o chicote é instrumento de alerta e comando – como a batuta de um maestro. Deve ser usado com critério pelo cavaleiro. Não é símbolo de ameaça, tortura ou castigo. Um mês antes da chicotada no cadete, Hirakawa retornara de um curso de técnica de ensino na PM paulista. Depois de publicar foto do brevê dourado que passou a usar no uniforme, um amigo escreveu: “Sucesso na aplicação dos novos conhecimentos”.
Tido como um liberal, o coronel Íbis Pereira, o comandante que afastou Hirakawa, proibiu trotes – como forçar novatos a se deitar no pátio para secá-lo com a farda ou a rolar no campo à noite, junto a formigas. Nos anos 1980, alunos dormiam dentro de armários, com a roupa encharcada. Íbis também vetou canções de rivalidade entre turmas – embora persistissem, a sua revelia. Em agosto, foi substituído por um oficial mais tradicional, Cristiano Gaspar, para quem “cadete tem de sofrer por três anos” e “chegar formado ao batalhão, com cara de assustado”. Cristiano impôs regras mais rígidas e aumentou a carga horária do curso. Agora, ele começa às 5h30 e, incluindo palestras, pode chegar até as 21 horas. Na gestão de Cristiano, canções e trotes estão de volta. Uma semana depois da troca de comando, dois alunos foram presos por atacar sexualmente uma recruta, no vizinho Cfap – onde morreu Paulo Aparecido.
Com essa mentalidade até na formação de oficiais, é difícil antever o progresso da polícia esperado pela sociedade. Após a morte do recruta Paulo Aparecido, a ministra Maria do Rosário, dos Direitos Humanos, disse que “um treinamento que produz sofrimento e morte precisa ser revisto”. Há muito mais a rever na formação policial.
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