14 de abril de 2010

Registro policial disfarça crimes

Registros mascaram crimes violentos em JF
Juiz de Fora tem experimentado sucessivas quedas nos seus índices de criminalidade violenta (ICV), principalmente depois de iniciada a Integração de Gestão em Segurança Pública (Igesp). O modelo de gestão integrada, anunciado na cidade no final de 2006, foi adotado pelo Governo de Minas com a finalidade de prevenir e combater os crimes no estado, a partir da implantação de ações conjuntas das polícias Militar e Civil. Mas a redução dos números da violência, que deveria ser fruto do compartilhamento de informações e coordenação das atividades no setor, pode não ser o reflexo da realidade. Há um mês, a Tribuna investiga as ocorrências lançadas no Registro de Eventos de Defesa Social (Reds), que servem de base para a formatação de estatística dos crimes. O jornal descobriu que ocorrências que compõem o índice de criminalidade violenta, como homicídio, tentativa de homicídio, roubo, sequestro, tentativa de sequestro e latrocínio, estão tendo a sua natureza alterada por outros crimes que não entram no indicador de criminalidade violenta. Desta forma, alguns homicídios estão sendo registrados como encontro de cadáver; tentativas de homicídio viram lesão corporal e roubos estão sendo chamados de extorsão.
Um caso grave que exemplifica esta situação ocorreu no final de março. O lavrador Francisco José de Souza, 62 anos, foi encontrado morto no Rio do Peixe, em Valadares. Apesar de ter recebido mais de 30 pauladas, a maioria na região da cabeça, e de haver rastro de violência no caminho onde o corpo se encontrava, a Polícia Militar registrou apenas um encontro de cadáver e não um homicídio. No entanto, em 24 horas, os suspeitos do assassinato foram localizados pela Polícia Civil, confessando a emboscada e as agressões. “Se existe uma indicação de que houve violência contra a vítima, o caso não pode ser caracterizado como encontro de cadáver, mas homicídio. De qualquer jeito, uma ocorrência desta natureza deveria ser enquadrada em qualquer item do índice de criminalidade violenta”, considera o professor de direito penal da UFJF, Cleverson Raymundo Sbarzi. O delegado Rodrigo Salomão confirma: “Havia rastros em boa parte da fazenda.” Dados consolidados pelo Sistema Integrado de Defesa Social (Sids) apontam que de 1º a 20 de março, teria ocorrido apenas um homicídio na cidade. No entanto, levantamento da Tribuna aponta para quatro assassinatos no mesmo período.
Já o registro de tentativa de homicídio como se fosse lesão corporal é recorrente. Em 17 de março de 2010, um homem de 40 anos entrou em luta corporal contra outro de 36 em Rosário de Minas. Na luta, foi atingido por dois tiros na cabeça, conforme ficha médica do Hospital de Pronto Socorro (HPS). O documento revela que os tiros atingiram V. de raspão. O caso foi registrado pela PM como lesão corporal, mas o inquérito, porém, foi instaurado como tentativa de homicídio. “A diferença da lesão corporal para homicídio tentado é a intenção do agente. Na primeira, a intenção é ofender a integridade física, sem que passe pela cabeça do sujeito a possibilidade de matar o outro. No homicídio tentado ou consumado, a intenção é matar”, explica Sbarzi. Ele ressalta que ninguém atira contra a cabeça de outro sem intenção de provocar a morte.
Em outra situação, o adolescente E., 16, encontrava-se na antiga Favela do Rato, quando dois indivíduos em uma moto atiraram contra ele. O boletim foi registrado como lesão corporal, embora o garoto tenha apontado outros jovens, com quem tem rixa, como suspeitos. De acordo com o delegado Rodrigo Salomão, se não houver apuração do crime, registros de lesão corporal, mas que, na verdade, configuram-se tentativas de homicídio, podem ficar sem investigação, alimentando a impunidade.
O cientista social Paulo Roberto Figueira Leal destaca que a falta de confiabilidade nas estatísticas policiais compromete as políticas públicas. “Quanto menos confiável é uma estatística, pior para todo sistema. Porque, teoricamente, as estatísticas deveriam servir para indicar onde o recurso público deve ser investido, onde estão os problemas mais graves que demandariam esforço prioritário. Na verdade, em nome de produzir uma estatística mais favorável para os governos, o que se impede é uma oferta de racionalidade de política pública.”
‘Situação precisa ser investigada’
O assessor de comunicação da 4ª Região da Polícia Militar (RPM), major Sérgio Lara, disse que os casos de alteração de natureza dos crimes têm que ser analisados individualmente. “Pode estar havendo um erro de interpretação por parte dos policiais, já que o policial não é o técnico. Mas a manipulação dos dados não é nosso objetivo. Eles foram criados exatamente para termos um diagnóstico da realidade. A orientação do comando é a transparência e coerência dos dados. A situação precisa ser investigada e os casos analisados um a um.”
No entanto, o problema não se restringe aos crimes contra a vida, já que a situação também foi notada nos registros de roubos. Dados do Sistema Integrado de Defesa Social (Sids) indicam que, de 2008 para cá, teria havido significativa redução no número de roubos, principalmente a pedestres. Enquanto, em 2008, foram 739 registros, em 2009 chegou-se a 498, uma queda de 32,6%. Já em relação a homicídios tentados, vem sendo apontada redução desde 2008. A comparação com os três primeiros meses do ano indica declínio sucessivo: 33, em 2008, 26 em 2009, e 19 em 2010.
Casos em que a alteração da natureza de crimes no lançamento dos registros ocorrem deixam dúvida sobre a versão policial. No mês passado, o vendedor de picolé C., 28, foi abordado, na Avenida Rio Branco, por dois indivíduos, um deles armado com faca e o outro com revólver. Os autores levaram do rapaz R$ 72. O fato foi registrado como extorsão, mas, para o professor de direito penal da UFJF, Cleverson Raymundo Sbarzi, não há dúvida: a ação caracteriza roubo. “Na extorsão, a vítima é compelida a entregar a coisa, com medo da violência. No roubo, a coisa é arrebatada da vítima. A ameaça não é futura, é iminente. Além disso, quando o roubo ocorre com emprego de arma, a pena é aumentada em um terço.”
Amanda Lúcia Alves Martins, 22, funcionária de uma loja de conveniências, no Bairu, passou por situação semelhante. Em 27 de fevereiro deste ano, ela registrou boletim de ocorrência, cujo histórico indica que um homem entrou no estabelecimento e lhe obrigou a entregar todo o dinheiro do caixa. Segundo ela, o indivíduo estava com um volume debaixo da camisa aparentando ser uma arma. O homem a empurrou e deixou a loja com R$ 400 do caixa.”Ele se debruçou sobre o balcão, anunciou que estava armado e mandou passar o dinheiro.” O caso também foi registrado como extorsão, embora trate-se de roubo.
Seds diz que há outros bancos de dados
A assessoria de Comunicação Social da Secretaria de Defesa Social (Seds) de Minas Gerais informou que o cálculo do índice de criminalidade violenta (ICV) em municípios que utilizam o Reds, caso de Juiz de Fora, é feito com base nos dados consolidados do Centro Integrado de Informações do Sistema de Defesa Social (Cinds). Segundo a secretaria, o centro consolida as informações dos diferentes bancos de dados criminais (Reds, PCNet, etc), eliminando duplicidades, dubiedades e inconsistências que possam estar presentes nos diversos registros. A partir dos dados validados pelo Cinds, a Fundação João Pinheiro, órgão externo ao Sistema de Defesa Social, analisa e publica, trimestralmente, os boletins de informações criminais que são a fonte oficial de estatísticas criminais do Estado. No entanto, se um crime violento que foi registrado pela PM com outra natureza não for apurado pela Polícia Civil, o equívoco pode não ser corrigido.
O delegado Rodrigo Rolli confirma. “Muitos crimes não são apurados. Então, se não são apurados, o que prevalece é o número da PM.” Segundo a Seds, a qualidade dos dados é objeto de constante avaliação e monitoramento por parte do Sistema de Defesa Social, a fim de oferecer à sociedade informações cada vez mais qualificadas e precisas. “Esclarecemos ainda que não há, obviamente, qualquer determinação para as polícias no sentido de “reduzir índices a qualquer custo”. O Sistema de Defesa Social opera, sempre, sob as determinações da lei e conta com diversos mecanismos de controle interno e externo de sua atuação, bem como um importante foco na avaliação contínua e promoção da qualidade de atendimento ao cidadão”, afirma a assessoria.
‘Ocorrência é base para inquérito’
Robson Sávio, pesquisador do Centro e Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, (Crisp), órgão ligado a UFMG, explica que, é a partir dos indicadores de criminalidade que os diagnósticos no setor de segurança são construídos para a elaboração de metas de redução de crimes. “O Reds tem uma descrição bastante pormenorizada de vários tipos de crimes e trabalha tentando padronizar a tipologia de cada um. Mas é fundamental que os operadores do projeto conheçam bem a ferramenta para poder operá-la.”
O professor de direito penal da UFJF, Cleverson Raymundo Sbarzi, ressalta que o histórico da ocorrência é a base para um inquérito bem feito e um processo bem-sucedido. “Mas o preenchimento dos BOs (boletins de ocorrência) está muito ruim e os inquéritos que chegam ao Ministério Público sofríveis. Os relatórios são inconclusivos e não apuram a prática de crime. Com isso, as investigações ficam comprometidas e podem levar a um resultado final de absolvição de possíveis culpados por crimes graves”, alerta.
Para o cientista social, Paulo Roberto Figueira Leal, a medida em que se adota uma política pública capaz de levar, direta ou indiretamente, os agentes policiais a não tipificarem corretamente os crimes, a situação se agrava, resultando em prejuízo imediato de ações e desperdício do dinheiro público. “Mesmo quem nunca fez uma notificação policial é atingido por conta de um processo perverso de ilogicidade dos recursos públicos. O pior que pode haver com qualquer estatística pública é ela não ser confiável.”
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14 comentários:

Anônimo disse...

Muito boa reportagem.
Os jornais da capital deveriam fazer o mesmo, investigar os métodos de abaixar a criminalidade na RMBH.
Todos que trabalham na área operacional (PC e PM) sabem das artimanhas.
Roubos são registrados como extorsão, já que este último são considerados crimes não violentos e a estatística abaixa rapidinho e não se tem cobrança.
Até como furto se tem registro.
Falar que o Estado não tem interesse em manipular dados não é verdade.
A área de segurança sempre foi carro chefe do governo atual e os profissionais tem interesse em abaixar a criminalidade a todo custo.
Motivo: cobranças de seus superiores e o prêmio produtividade.
Homicídio tentado vira lesão corporal sim.
E veja esta fala: "“Pode estar havendo um erro de interpretação por parte dos policiais, já que o policial não é técnico".
Se o policial não é técnico, quem e?
Os sociólogos de plantão que acham que entendem de segurança porque pesquisam segurança?
O erro é proposital e alguns são provocados.
E os inquéritos em sua grande maioria são de crimes violentos, furtos hoje são tratados como se fossem crimes pequenos e arrombamentos não são apurados em sua grande maioria.
O Estado deveria fazer abertura do banco de dados, ocorrência por ocorrência, mostrar os erros e não apenas fornecer nrs para estatísticas que hoje não convenvem nem mesmo os policiais.
Seria mais transparente.

Anônimo disse...

Concordo com o anônimo acima.Lendo a reportagem estranhei a colocação de que o policial não é técnico.O erro é proposital mesmo.Isso não é de agora. Comandantes maquiando estatística para repassarem para a imprensa,isso eu já vi e não poucas vezes. Logo estaremos vendo cadáveres sendo jogado para o outro lado: do estado, das cidades, das regiões, das áreas, etc....(se já não tiver acontecendo).
Compromisso com a verdade X sistema, dignidade X subserviência. Quem escolhe um, vai atritar com o outro, com certeza.

Anônimo disse...

Depois vão a midia e fica falando aquelas prosopopéias, de diminuição de crimes violentos, e fica mandando aquelas estatisticas furadas pra imprensa, é ja não faz mais policia séria como antigamente, hj tudo se transformou em numeros.Me engana que eu gosto. Boa reportagem.

Anônimo disse...

Isso é que dá promover a Coronel, pessoas que no CFO eram bizonhas, quando se falava em tirar um policiamentozinho de Mineirão quiabava todo. Pessoas que tem medo de serviço de rua, não vão nunca ensinar ninguém a ser técnico. Somente vai ensinar a ser técnico de manipulação de dados estatisticos. Isso é culpa do alto comando com o aval da cupula. Só se promove quem puxa o saco, quem joga bolinha junto, quem é vaquinha de presépio e não vai contestar nunca as ordens dadas e nem entrar em atrito com a SEDS. Aí o cara não sabe o que fazer, aliás, sabe fazer para jogar a sujeira debaixo do tapete. Daqui a puco os sociologos vão assumir o comando da PM.

Anônimo disse...

Concordo com quase tudo que foi postado, exceto:
1)"a não faz mais policia séria como antigamente". As polícias nunca foram sérias realmente em período nenhum da história. Vimos homens sérios (poucos) no serviço policial. Mas as polícias de um modo geral sempre cumpriram bem sua finalidade como CAPITÃO DO MATO. Sempre foram instrumento das oligarquias.
2)"Daqui a puco os sociologos vão assumir o comando da PM".
Seria ótimo se pudessemos ter em nossos quadros sociologos ou militares com outros cursos, mas dotados de bom caráter.Nosso problema ainda é a nossa crise moral. E não somos dirigidos diretamente por sociologos, psicólogos nem outros ólogos da vida.

Anônimo disse...

B R I L H A N T E

Esta reportagem foi brilhante deveria ter sido publicada no Jornal O GLOBO, para conhecimento de todos Brasileiros, sobre o Governo Aécio, se bem que poucos leêm muitos utilizam para outro fim.

Anônimo disse...

O Major falou que policial nao é tecnico? Oque significa CTSP? NAO É CURSO TÉCNICO DE SEGURANÇA PÚBLICA? KKKKKKKKKK

Anônimo disse...

É só fazer igual estão fazendo la´em Caratinga, que os indices vão baixar assustadoramente.

Anônimo disse...

Boa Noite, a Reporter DANIELA ARBEX, merece todo nosso respeito pois causou um "fuduncio" no COPOM da 4 RPM. agora querem saber quem passou isto para ela, a Inteligência esta falando em Policial Civil dedo duro.

Anônimo disse...

Pior é quando forem comparar apreensões de Drogas antes Governo Aécio e no Governo Aécio ou 2000, 2001 e 2002 coparando com 2008 e 2009. Pelo menos é o que ocorre por aqui.Parabéns a Reporter pela Matéria.

Anônimo disse...

E a última promoção a coronel também foi uma lástima.
Um realmente mereceu, ralou na área operacional nos últimos anos.
Um nem sabe o que é comandar, mas como se relaciona bem que é o que conta, foi promovido para uma função que não existia até então, mas quem se importa com isto, além de quem foi furado.
O outro tentaram coloca-lo para comandar, mas foi uma catástrofe.
Foi retirado e fizeram de conta que nada aconteceu.
E assim continua a nossa PM.

Anônimo disse...

Os sociólogos não vão assumir o comando da PM, já assumiram há muito tempo.
Dão ordens, marcam reuniões, comandam, dão palpite e nossos cmts balançam a cabeça concordando, pois discordar jamais.
E apesar destes sociólogos nunca terem sentado em um banco de viatura, passado um plantão em uma delegacia, atendido uma ocorrência ou trocado tiro com marginais, querem ensinar como devemos trabalhar, diminuir homicídios, evitar roubos e fazer prevenção.
Mas na verdade não sabem nem como enganar os dados estatísticos até que lhe ensinemos.

Anônimo disse...

Dê uma olhada nos números de Patos de Minas e Carmo do Paranaíba.
Não são diferentes!

Anônimo disse...

Estamos exportando tecnologia de enganação de dados até para Patos.
Em pouco tempo para toda Minas.